Acaba de estrear nas salas de cinema de Portugal o filme The Inner Life of Martin Frost (A Vida Interior de Martin Frost) do escritor/realizador nova iorquino Paul Auster. Esta última extravagância tem, como narrativa muito anti-hollywoodesca, uma história de um famoso escritor que procura a afamada tranquillité para descansar e acaba por descobrir a maior aventura da sua vida.
Por falar em tranquilidade, quem não se lembra da introdução excessivamente cervantesca do filme Chocolate, do realizador sueco Lasse Hallstörm; o mesmo que realizou filmes como “Chegadas e Partidas” (Shipping News), Casanova, Aprendiz de Sonhador (Gilbert Grape) - obras que têm a particularidade de transportar o público para um mundo de sonho, onde a iluminação tem um papel ainda mais crucial no decorrer da criação das atmosferas que compõem a totalidade das narrativas.
Chocolate Trailer
Já Henri Alekan, afamado iluminador da história da cinematografia francesa, falava da importância da iluminação para passar a mensagem desejada. “A luz verdadeira nem sempre é a luz justa. Assim, ela deve ser reinventada”, afirmava.
Historicamente, podemos ver que, já no início do século passado, Serguei Eisenstein tinha pensamentos muito vincados sobre a importância de uma correcta iluminação para criar uma cor que pudesse fazer com que cada elemento se tornasse “no protagonista do momento presente”. Se pensarmos em filmes como O Couraçado de Potemkine e Ivan o Terrível poder-se-á afirmar que a obra deste realizador se resume à expressão “Conflito!”.
O Couraçado de Potemkine
É verdade que, em termos de edição, Eisenstein monta de um modo directo e seco; no entanto, no capítulo da iluminação – apesar de ter contrastes muito acentuados – há uma teatralidade que está cada vez mais presente à medida que a sua obra se vai desenvolvendo. Este aspecto poderá ser visto com ainda mais veemência nos filmes Ivan o Terrível I e II – os últimos filmes da sua curta vida. Aqui, as personagens são hiper-teatralizadas através dos movimentos, projecção de sombras, maquilhagem, encenações e até na linguagem de planos utilizada pelo realizador.
Nestas obras, apesar da iluminação funcionar por assimetrias assumidas ao longo da película, há momentos em que a luz cria um ambiente cuja plasticidade nos remete para um mundo onde imana uma sensação de artificialidade que só poderá ser encontrada nas esferas das narrativas fantásticas. No entanto, apesar de existirem simetrias, será que a cor é única? Não. Por exemplo, em Nosferatu (1922 – Realização F.W. Murnau) observa-se que há cores que caracterizam cada momento de acordo com as necessidades que compõem a trama deste filme. Por exemplo, no famoso plano do amanhecer na embarcação que transporta o Vampiro - Conde Orlok (Max Schreck), que é feito em contrapicado (para se conseguir uma sensação de pequenez no público) há um tom azul de tal forma profundo e generalizado que o espectador sente que a criatura consegue cessar o resto da acção, sendo ela o enfoque de tudo o que a rodeia.
Ela é: o mastro, a face, as garras, as velas, as cordas, a roupa, etc.; enfim, Nosferatu transforma-se numa atmosfera. Esta histórica versão não autorizada de Dracula de Bram Stroker é um caso paradigmático da história do cinema pela importância que Murnau deu ao tratamento preciosista da iluminação para criar atmosferas únicas. Poucos se não lembrarão das garras projectadas nas paredes da pensão na cena da dentada!
Nosferatu
No entanto, seria de todo injusto não falar de D.W. Griffith – o primeiro realizador babilónico (em todos os sentidos) de Hollywood. Dos seus filmes, estilo Vaudeville, gostaria de destacar o caso d’O Lírio Quebrado (1919) porque é uma das primeiras obras em que há uma preocupação com a iluminação e com a cor. Aqui, há a frequente utilização do sépia e do verde de acordo com vários momentos da narrativa; os tons esverdeados são utilizados em momentos de acção mais acentuada, enquanto que o sépia é referente à estagnação e a momentos considerados meramente informativos. Ao falarmos de iluminação e na criação de atmosferas, deve-se referir o pertinente espólio de Francis Ford Coppola - realizador unanimemente considerado como um monstro pictórico na arte da cinematografia. Por exemplo, no seu filme Dracula de Bram Stroker, na sequência em que Vlad Tepes descobre que a sua noiva Elisabetha se suicidou, há um plano picado em que a existência de uma jura virada para os céus a amaldiçoar Deus denuncia a chegada de tempos tenebrosos, com o vermelho a caracterizar progressivamente todos os elementos que compõem o espaço. Aqui, na vasta obra deste realizador, podemos fazer uma comparação contrastante com o início do Padrinho II, onde, nas cenas em que se revive a infância de Don Vito Corleone, há uma alegria contagiante, aparentando-se um convite ao público para um regresso à infância; esta característica mantém-se até ao momento em que o rapaz foge para os EUA, para dar início à saga que afamou o nome de Coppola...
Por fim, ao referirmos ambientes pictóricos, há que destacar a obra de Brian De Palma; aqui, gostaria de sugerir dois momentos, em duas obras distintas. No filme Os Intocáveis há uma introdução à cidade de Chicago, nos anos 20 do século passado, com um brilho muito vivo e uma limpeza que é abruptamente interrompida com uma ruptura estonteante que nos leva por uma viagem em catarse pelo mundo da máfia de Al Capone. Em La Femme Fatale, uma obra muito noir, De Palma recorre ao já típico grau de brilhantismo que imana dos elementos; aqui, o realizador cria um assalto numa cena onde contracenam Rebecca Romijn e Rie Rasmussen; nela, os planos apertam-se à medida que as tentações carnais são retratadas de uma forma tão confluente que faz com que cada elemento que compõe a cena seja, gradualmente, parte culpada do roubo de um colar de ouro porque a totalidade do cenário acaba por adquirir um tom dourado à medida que se atinge o clímax da narrativa – que é naturalmente o assalto. No entanto, a relação do tratamento da luz e dos movimentos da objectiva faz que com haja um hiato entre o real e a ficção tão diminuto que surgem dúvidas em relação à origem maligna desta cena.
Os Intocáveis
Dracula de Bram Stroker
N’ A Vida Interior de Martin Frost, tal como acontece nas obras de De Palma e de Hallstörm, Paul Auster utiliza uma iluminação que cria um ambiente tranquilo onde o brilho que imana demonstra a pureza do lugar onde decorre a narrativa. No entanto, há um certo grau de solidão que se começa a manifestar frame a frame até que numa manhã Frost descobre uma misteriosa mulher deitada ao seu lado. Martin apaixona-se loucamente por esta misteriosa musa – o que o leva a escrever a sua obra mais completa; no entanto, à medida que o desenvolvimento da sua história entra em catarse a iluminação, que começou por ser baseada em cores graficamente quentes e confortáveis, entra nas esferas provenientes da luta ancestral baseada no preto e no branco; historicamente, este aspecto denuncia a iminência de um fim trágico.
Aqui, podíamos lembrar as atmosferas dos filmes Million Dollar Baby e Mystic River, do norte-americano Clint Eastwood, onde há uma “jigajoga” entre o claro e o escuro (aspecto que provém do expressionismo alemão e dos filmes noir), que faz com que a passagem entre o realismo e o fantástico seja diminuta e, por isso, repentina. Aqui, há um jogo baseado num vice-versa de fortes contrastes luminosos que faz com que haja uma atmosfera onde existe uma aparente luta entre o bem e o mal. Ou, como acontece no caso de Martin Frost, entre o outer self e o inner self. No entanto, como disse Chklovski, poder-se-á afirmar que na obra “Cinema”, tal como acontece em qualquer arte, estamos perante “uma soma de processos”. “And that’s how the cookie crumbles!” (Jim Carrey – Bruce o todo Poderoso).
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